quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Saúde pública, nua e crua


Hoje vou falar um pouco sobre mim, embora o título deste texto seja de interesse da população. Mas o que vim falar é sobre a influência da Saúde Pública na minha vida.
Muitas pessoas sabem da minha carreira acadêmica, da paixão por pesquisas em imunologia, genes, moléculas, citocinas, anticorpos monoclonais... Mas poucas sabem da minha paixão pela Saúde Pública, na prática, nua e crua. Fui biomédica plantonista num hospital e maternidade num dos bairros mais pobres e violentos de Recife - o Ibura - durante 4 anos, e nesse período aprendi coisas que levarei comigo pro resto da vida.
Vi pessoas carentes de assistência e de atenção. Não atenção básica, atenção de olho no olho, de uma palavra de esperança, de um abraço num momento de dor. Pessoas que só queriam que alguém as escutasse, mas o "Dotô" não tinha paciência porque a fila de pacientes estava grande. Vi meninas de 12, 13 anos grávidas, tomando um "dudu" (ou sacolé) como uma criança feliz sem se preocupar com o que estava por vir, enquanto esperavam para fazerem o Beta-HCG, e sem perceber que eram duas crianças na verdade (mãe e filho) e não uma. Vi que até para os bandidos existe algum tipo de ética. Sim, porque quando viam o adesivo do estacionamento do hospital no meu carro, diziam: "deixa pra lá, ela é do hospital", me poupando de assaltos ou coisas muito piores. Eu servia à comunidade deles e não me arrependo.
Tive colegas de profissão geniais e humildes, na mesma proporção. Tive colegas generosos, que davam uma verdadeira lição de amor à medicina. Tive colegas idosos, com jeitão rude, mas de coração imenso (abraço, seu Boni!). Fiz amigos verdadeiros, que sinto falta até hoje. Mas vi também muita gente arrogante, tratando com desprezo e até mesmo nojo, aquelas pessoas carentes de higiene e de educação, negligenciadas pelo estado, pela vida.
Vi como a vida é efêmera, ao diagnosticar uma leucemia numa criança de 5 anos e sentir a impotência na pele. Vi como a vida é bondosa, ao conseguir atendimento com uma das melhores hematologistas do Brasil para minha mãe e que a tratou com todo cuidado e atenção - do mesmo jeito que ela tratava todos os pacientes. Independente de quem fossem.
Aprendi que se quisesse trabalhar lá, teria que me virar. Eu não era só a Doutora Daniele. Eu era faz tudo. Consertar microscópio (sim, abrir, desmontar, limpar, trocar lâmpada), fazer a manutenção de equipamentos, quebrar a cabeça por que a calibração não deu certo, trabalhar com luvas tamanho G, porque as do tamanho correto não foram compradas, ler mais de 100 lâminas por dia, porque os equipamentos eram precários e não confiáveis e eu era a única biomédica plantonista do laboratório. Ah, como me virei ali!
Acordar às 2h, às 4h, às 6h da manhã - ou seja, não dormir - quando explodiu a epidemia de Zika virus e ninguém sabia o que era e a toda hora eram pilhas de exames feitos. Aprendi a lidar com pessoas grossas, pacientes ou não, e me impor para todos, sendo respeitada no meu plantão. Aprendi a escutar, nossa, como aprendi a escutar. Aprendi a calar também.
Na ciência, na pesquisa e no ensino falamos mais do que escutamos: conferências, aulas, seminários, palestras, apresentações de tese, de trabalho, de congressos.
Na Saúde Pública não. Falamos o necessário e aprendemos a ouvir os pacientes, do jeitinho deles e conviver com a desigualdade social todo dia, ali, gritando na sua cara e na sua consciência quando você chega em casa e vê suas coisas, sua geladeira cheia, sua cama confortável e agradece a Deus por tudo que você tem.



Escolhi ser biomédica porque queria "fugir" desse contato próximo dos pacientes. Sou mole, choro com tudo, me apego. Com o tempo, vi que as pessoas confundiam isso com fraqueza emocional. Então criei uma casca, aprendi a ser grossa, aparento ser braba, impositiva - tudo para disfarçar minha essência. Mas na Saúde Pública isso não foi possível. Os pacientes chegavam a mim para perguntar do exame porque o médico não explicou direito. Ou chegavam para contar da vida deles, de que estava sem dinheiro para lanchar e teria que ficar ao lado do filho que foi internado. Alguns descontaram em mim a raiva e frustração pela vida, e tive que me calar e sofrer sozinha, porque no fundo eu entendia o desespero.
À noite, no plantão, deitava para descansar com medo. Teve um tiroteio na comunidade e uma bala furou a parede do repouso feminino. Era uma roleta russa. A porta também não tinha trava, já tentaram entrar uma vez para furtar, mas graças a Deus nunca me aconteceu nada. Sempre tive a proteção Divina, talvez por fazer meu ofício com resignação e amor.
A Saúde Pública me ensinou a ser mais compreensiva, paciente e a entender que eu não posso resolver os problemas do mundo sozinha, mas que posso e devo fazer a minha parte.
Vi a Saúde Pública na sua pior forma: sem remédios, sem leitos, sem luvas para trabalhar, sem equipamentos, sem médicos suficientes, sem estrutura, sem segurança, mas ainda assim aquele hospital era a única esperança de muitos.
Tenho um enorme carinho por essa época, mesmo com tantos perrengues, mesmo ganhando pouco, mesmo passando por situações difíceis e tendo que engolir o choro, mesmo com o medo constante de estar num lugar violento. Tenho carinho porque fiz amigos. Tenho carinho porque amadureci e aprendi a dar valor a tudo que tenho - sou rica, sou abençoada por ter tido a oportunidade de estudar para ajudar essas pessoas de alguma forma. Pessoas que eu não queria contato quando escolhi minha profissão e que no final, me ensinaram tanto, em todos os plantões. Aprendemos todo dia, na teoria e na prática e a Saúde Pública é uma grande lição de vida.




Daniele Van-Lume Simões 21 de setembro de 2016

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